“O direito de criticar, e o dever de, ao criticar, não faltar à verdade para apoiar nossa crítica é um imperativo ético da mais alta importância no processo de aprendizagem de nossa democracia”. É com esta frase que Paulo Freire inicia seu texto sobre o direito de criticar e o dever de não mentir ao criticar.
Esse posicionamento ético-moral de, ao emitir um juízo de valor, explicitar, com rigor, todos os pontos argumentativos sustentadores de uma afirmação, requer muito cuidado pois implica um diálogo aberto, tanto entre sujeitos da mesma posição política, quanto entre sujeitos de posições opostas. O que deve balizar o diálogo, e o necessário enfrentamento de idéias que serão colocadas em prática na política cotidiana, é esse sentido permanente de cuidar, tanto o que se fala, como com quem se fala, especialmente sobre o quê se fala.
A emissão de um posicionamento político, tão necessária aos seres sociais, conscientes de serem sujeitos protagonistas da ação, é prova de uma postura permanente rumo à transformação, ou superadora do que se tem, ou mantedora da ordem vigente.
A educação, como prática da liberdade, é por si só política. E política não é um termo que se restrinja ao plano eleitoral. Política é o ato consciente de debater-projetar-executar propostas relativas à melhoria da condição humana. A política, quanto mais democrática, mais includente no que diz respeito à participação, à ação, à transformação.
Ao tomarmos a educação como prática de liberdade, construiremoss células dialógicas nas quais os seres humanos transitem – escolas, famílias, igrejas, partidos, assembléias populares -, para que sejam espaços permanentes de exercícios de uma dinâmica de poder: poder ser para poder executar e vice-versa. A educação como prática da liberdade é por isso mesmo política. É uma ação transformadora dos sujeitos que, ao tomarem consciência de que nasceram para ser mais, não aceitarão, no plano político não democrático, o exercício que um grupo lhes delega para ser menos.
Essa premissa vale para a escola, para os partidos, para as famílias, para as assembléias populares, para os espaços religiosos: a educação como prática da liberdade, por ser política, requer um imenso apresso pela verdade. Mas a verdade, muito relativa, terá um ponto de vista particular a partir do lugar e da forma que utilizamos ao nos colocarmos frente às posições políticas no espaço em que vivemos . Uma verdade, dependendo do ponto de vista de quem a emite, é uma mentira, dependendo de quem a recebe. E, através do diálogo, na capacidade de todas as partes poderem pronunciar, sem denegrir, sem mentir e sem velar o outro, grupos maiores poderão elaborar outras tantas verdades. Porque a verdade, como ato político, assume um caráter e um posicionamento de classe. Como nos ensinou Freire, a escola não está imune ao cotidiano vivido pelos sujeitos que protagonizam este espaço. A escola, como as outras células, é um espaço permanente de encontro entre sujeitos que vivem um cotidiano cheio de conflitos, de diferenças, de discriminações, de desigualdades. Logo, é um espaço que põe em permanente movimento a histórica situação não democrática vivida na sociedade. Frente a esta desigual forma de ser, ocupar e estar no mundo, a neutralidade evocada constitui um ato de velar uma opção política anterior, portanto, revela um ato de má-fé travestida de cientificidade.A capacidade que os detentores do poder têm, de, ao manipular, alienar os sujeitos, ora pouco políticos, a partir de uma prática permanente de velar o outro, o posicionamento do outro, as verdades do outro.
Uma sociedade levantada através da negação do debate, não pode ser, no presente, uma sociedade democrática. Para que isto ocorra, que a democracia seja real, os imperativos despóticos têm que ser substituídos por mecanismos concretos de participação. Nunca a luta de classes esteve tão explícita; Nunca foi tão aberto o jogo de grupos dominantes, contra grupos que não aceitam sua subordinação na histórica luta de classes; Nunca foi tão insistente o modo mentiroso como os representantes da direita, tentam, em todos seus instrumentos políticos, denegrir – denominando de esquerdismos e esquerdistas – a todos aqueles que acreditam num processo de desenvolvimento diferente do que se teve, se tem e se projeta a partir da hegemonia do pensamento e prática burgueses; Nunca foi tão aberto o processo anti-ético e imoral de, ao não se ter rigor, se citar práticas e reflexões de pensadores e sujeitos políticos de esquerda, sem apresentar a seu público, o que pensavam, como pensavam, quem eram na ação concreta de seu momento histórico. Nunca foi tão anti-dialógico o enfrentamento de classes; Nunca foi tão perverso o mecanismo de alienação das novas gerações que, ao se apaixonarem pelo poderio tecnológico, vão perdendo o prazer e a necessidade de conhecer e se reconhecer na história; Nunca foi tão desumano o processo de educação para o sucesso, sem tomar em conta a baixa formação humana desses sujeitos.; Nunca foi tão vergonhoso o modo - a forma e o conteúdo - que a classe dominante utiliza para projetar não só sua versão da história, como seu posicionamento de classe sobre a história, de sua meia verdade e gigantesca mentira sobre os inúmeros acontecimentos históricos em disputa por uma outra lógica de poder, de ser, de humanizar o processo de desenvolvimento a partir de uma outra lógica que não a do capital.
Para quem acredita que a luta de classes acabou, leia – para nos restringirmos ao caso brasileiro – as revistas exame, isto é, dinheiro, e os demais instrumentos da classe dominante. Aí verão, como, ao assumirem o compromisso com suas mentiras, dada a falta de rigor no que se fala e sobre o quê e quem se fala, projetam na sociedade clichês manipuladores sobre seus oponentes. Nestes instrumentos fica claro quem é, na posição de quem, o atual e histórico inimigo da classe trabalhadora. Caso não estivesse tão viva a posição opositora à ordem vigente, ou seja, o posicionamento político da classe trabalhadora à ordem vigente, esta não receberia tantas páginas de difamação nestes instrumentos políticos pouco rigorosos, como ocorre há anos no nosso País. Felizmente outros instrumentos, com suas verdades, mostram com rigor, e sentido ético-moral seu posicionamento de classe sobre os mesmos episódios. Caros amigos, carta capital, Brasil de fato, revista sem terra, são alguns dos instrumentos da classe trabalhadora que, ao contestar a ordem, evidenciam que sem luta organizada, não pode haver prática libertadora, política, para a superação.
Enquanto os instrumentos da burguesia hegemonizam o cotidiano do povo brasileiro, estes outros, de seus opositores, são divulgados, com muita dificuldade, a um grupo talvez menor, mas mais consciente da importância de se ter outros pontos de vistas sobre os fatos manipulados pelos meios dominantes globais. E quando, este grupo, em especial de educadores e militantes sociais, faz a ponte do que se tem e porque se tem o que se tem, e utiliza para isso os instrumentos que não são o da classe dominante, são chamados de agitadores, provocadores, mentirosos. Estes são, na verdade, sujeitos conscientes do papel histórico da educação libertadora: aquela que sabe que a neutralidade não existe e que o ato político ético-moral, não permite que só a verdade de quem possui dinheiro, deva ser manifestada. A estes educadores, militantes, sujeitos sociais que imprimem uma lógica política, ético-moral, a seu que-fazer cotidiano, Paulo Freire - e outros tantos mestres políticos que foram sujeitos sociais comprometidos - deixa vários ensinamentos, dos quais, talvez um dos mais importantes seja o de retomar a política como prática de ação revolucionária superadora da ordem vigente. Entendida a política como um espaço maior que o da escola, mas que também nela se manifesta. Ou seja, é necessário superar o estágio não democrático e não participativo instituído, por uma lógica em que o ser social, em todos os espaços de poder, ao manifestar seu ponto de vista, não negue sua história, as outras histórias e as múltiplas verdades a partir das quais se constrói ou se destrói o saber.
Nas palavras do mestre Freire: “A compreensão dos limites da prática educativa demanda indiscutivelmente a claridade política dos educadores com relação a seu projeto. Demanda que o educador assuma a politicidade de sua prática. Não basta dizer que a educação é um ato político, assim como não basta dizer que o ato político é também educativo. É preciso assumir a politicidade da educação. Não posso pensar-me progressista se entendo o espaço da escola como algo meio neutro, que tem pouco ou quase nada a ver com a luta de classes, em que os alunos são vistos apenas como aprendizes de certos objetos de conhecimento aos quais empresto um poder mágico. Não posso reconhecer os limites da prática educativo-política em que me envolvo se não sei, se não estou claro em face de a favor de quem pratico. O a favor de quem pratico me situa em determinado ângulo, que é de classe, em que divisa o contra quem pratico e, necessariamente, por que pratico, isto é, o próprio sonho, o tipo de sociedade cuja invenção eu gostaria de participar”.
(*) Economista e educadora popular