por Guilherme Scalzilli
Esperei um pouco para rever “Tropa de elite”, longe dos festejos pela premiação no Festival de Berlim. Gostei mais agora do que na época das polêmicas sobre o suposto caráter fascista do filme, que turvaram suas inegáveis qualidades técnicas e dramáticas e até seus defeitos pontuais. Mas continuo achando o prêmio incongruente, uma espécie de gesto de desagravo do júri presidido por Constantin Costa-Gavras, em reação às críticas negativas da imprensa estrangeira.
Esperei um pouco para rever “Tropa de elite”, longe dos festejos pela premiação no Festival de Berlim. Gostei mais agora do que na época das polêmicas sobre o suposto caráter fascista do filme, que turvaram suas inegáveis qualidades técnicas e dramáticas e até seus defeitos pontuais. Mas continuo achando o prêmio incongruente, uma espécie de gesto de desagravo do júri presidido por Constantin Costa-Gavras, em reação às críticas negativas da imprensa estrangeira.
“Tropa” é demasiado ortodoxo para tamanha consagração. Seu esmero visual não sobressai na cinematografia recente, brasileira inclusive, devidamente instruída e aparelhada para reproduzir o padrão norte-americano. Seria mais justo com as dimensões da obra se o ator Wagner Moura e o fotógrafo Lula Carvalho ganhassem reconhecimentos pessoais, poupando Berlim de um possível equívoco histórico.
Mas Costa-Gavras sequer prestaria atenção em “Tropa” se visse nele apenas um policial inconseqüente, na linha “Dirty Harry in Rio”. O lendário cineasta, autor de tantos clássicos libertários, provavelmente interpretou o filme por suas declaradas boas intenções, isto é, como uma crua denúncia das instituições policiais.
As acusações de fascismo vieram a calhar para o diretor José Padilha, justamente porque são ridículas, invalidando questionamentos mais conseqüentes. A idéia da apologia no produto artístico não tem sentido sob vigência da liberdade de expressão. Retratar como protagonista um policial corrupto não faz da narrativa um elogio da corrupção. Há grande potencial conscientizador no choque da empatia sedutora contra o racionalmente inaceitável – daí advém a força de tantos anti-heróis inesquecíveis.
Já teci comentários semelhantes sobre o Jack Bauer de “24 horas”. O seriado não comete delito algum, nem o filme brasileiro. Mas, se vamos analisar os personagens, não cabem controvérsias: Bauer e o capitão Nascimento, como seus modelos reais, são criminosos agindo sob a tolerância cínica das autoridades e da sociedade.
Assistir a prisões ilegais, torturas e execuções sumárias pode nos ajudar a compreender o funcionamento de um sistema corrompido que ajudamos a sustentar. Ouvir os argumentos desses bandidos nos induz a confrontar e discutir seu sistema de valores.
Portanto, nessa lógica da abordagem crítica, quando Nascimento defende que os usuários de drogas são co-responsáveis pelas mortes de inocentes, poderíamos concluir: eis a visão típica de um contraventor fardado, que reproduz os argumentos simplistas desse proibicionismo estúpido, arcaico e fracassado, do qual a própria polícia é instrumento. Na vida real, um soldado assassino, em sua brutalidade ilegítima, ignora a tendência mundial rumo à descriminalização da droga, ao abandono da legislação repressiva que leva à violência, à clandestinidade e à corrupção. Esse personagem, para ser crível, não poderia ter opinião diferente.
Mas “Tropa”, como todo filme de tese, evita abstrações, distanciamento e ambigüidades. Em vez de enfrentar a complexidade do tema, Padilha seleciona recortes convenientes e utiliza-os para comprovar um conjunto de argumentos pré-estabelecidos. E a couraça documental garante-lhe uma ilusão de infalibilidade (“conhecemos a verdade porque estivemos lá”), com tal pretensão de esgotar os debates que termina resvalando no mesmo autoritarismo de seus personagens.
A ótica do Bope, maniqueísta e simplificadora, está em toda parte: na supremacia dos soldados, nas motivações dos aspirantes, na alienação dos universitários, no menosprezo pelas teorias de Foucault (tomando a precaução de anular a maior objeção conceitual ao papel das polícias), na ridicularização das iniciativas assistenciais, na frieza cafajeste dos vilões. Não existem subtextos, lacunas ou silêncios; não sobrevivem dúvidas. Prevalece o didatismo das lições de moral, com castigo e tudo, no qual criador e criatura se amalgamam para gritar “Maconheiros filhos da puta!”.
A prova incontestável desse diagnóstico encontra-se num curto depoimento do diretor, escondido nos “extras” do DVD, quando ele defende a visão de Nascimento sobre a responsabilidade dos usuários pelo sustento do crime organizado. Em poucos segundos, somos tomados por uma descoberta estarrecedora: as idéias do personagem reproduzem um ponto-de-vista autoral. Padilha utiliza os policiais para manifestar-se. “Tropa” se transformou, assim, numa peça de propaganda da teoria repressiva e dos fundamentos jurídicos da putrefação institucional que o filme aparentemente denuncia.
Quase fui enganado por Padilha, e por isso compreendo o logro de parte do público e da crítica. As prerrogativas de criador permitem-lhe defender o teor acrítico de sua obra, alegando tratar-se de uma reprodução da realidade em estado bruto. Leni Riefenstahl deu explicações semelhantes para seu “Triunfo da vontade”, que passou de elogio do nazismo a exercício estético num piscar de tolerância. Em ambos os casos, porém, o pendor ideológico repousa por trás do manto das aparências, revelando-se naquilo que elas deliberadamente escondem.
Guilherme Scalzilli é historiador e escritor, autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.guilhermescalzilli.blogspot.com/
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